sexta-feira, 17 de junho de 2011

COISAS DE NOSSA TERRA

DE VOLTA AO PASSADO IV – OS DESVALIDOS



Maria Mula Manca era uma mendiga que percorria as ruas de Natal apoiada em um grande cajado. Em virtude de uma anomalia em sua perna, mancava ao andar. Além disso, sofria de uma deficiência na espinha que a obrigava a caminhar curvada para frente e a cada passo tinha que se apoiar no cajado, não obstante seu deslocamento ser feito com certa agilidade. Tinha na ponta da língua, para pronta entrega, um repertório dos mais diversos e ferinos palavrões. Era só ouvir o seu apelido – Mula Manca – e num arroubo de raiva, imediatamente começava o recital, não importando quem estivesse presente ou mesmo por quem fosse ouvido.






DJALMA ARNAHA MARINHO - 1960











ALUISIO ALVES























Dinartista doente - expressão usada para os admiradores e seguidores do ex-governador Dinarte de Medeiros Mariz - arrumou muitas brigas com os simpatizantes do também ex-governador Aluisio Alves, na campanha de 1960, ocasião que disputavam o governo do Estado, Djalma Aranha Marinho, então candidato do então Governador Dinarte Mariz e pela oposição, Aluizio Alves.

CAMPANHA PARA GOVERNADOR DO RN EM 1960




Com a vitória de Aluísio, ficou a exaltada eleitora sem condições de sair às ruas para continuar com sua mendicância, único meio de sobrevivência. Tinha tanta certeza da vitória de seu candidato que havia prometido por onde andava, que se ele não fosse eleito, iria embora e nunca mais retornaria a Natal. O então governador Dinarte Mariz, vendo ter se multiplicado o infortúnio de sua fiel aliada, apiedou-se daquela criatura, já tão maltratada pela vida, e enviou-a para morar em Brasília. Terminou seus dias numa terra onde viveu com dignidade onde era simplesmente Maria, uma mulher que merecia viver como outra qualquer, no lugar onde ninguém a conhecia, e assim seu apelido foi esquecido para sempre.

POSSE DO GOVERNADOR DINARTE DE MEDEIROS MARIZ


Outro mendigo famoso era Alicate. O apelido originou-se do formato arqueado de suas pernas. Conheci-o já velho. Andava com um saco nas costas onde colocava as doações. Vez por outra, parava em baixo dos pés de ficus Benjamin, que arborizava a Avenida Deodoro, onde se sentava pra fazer uma “boquinha”. Nessa hora, se tivesse de bom humor, era possível se aproximar dele e puxar conversa. Contava que veio do interior pra “Capitá” fugindo da seca braba e foi ficando, ficando e nunca mais voltou. Mesmo com o retorno das chuvas em sua terra, recusava-se a retornar alegando que ali, pelo menos, nunca mais tinha passado fome. Sempre havia uma alma caridosa para lhe dar um pouquinho de sobra de comida e outras esmolas que levava para o rancho onde morava lá para as bandas do Paço da Pátria, bem na beira do rio Potengi. Contava que quando partiu deixou mulher e filhos e desde então nunca mais teve notícias da família.























Afora dessas conversas, quando caminhava pelas ruas esmolando de porta em porta, ficava igualmente furioso se alguém o chamasse pelo apelido. Corria atrás dos meninos e atirava pedras em sua direção. Como era conhecido no bairro e também conhecia a maioria dos garotos, algumas vezes ia reclamar diretamente na casa de seus pais. Quando isso acontecia o castigo era certo, normalmente éram privados por alguns dias de brincar nos pés de ficus e até mesmo de sair de casa. Mas, quando terminava o castigo, não resistiam à passagem do infeliz e disparavam a toda altura: ALICATE!!!!!
















Naquela época as esmolas eram sempre doadas em alimentos. Banana, algumas frutas sazonais, pão e farinha eram os mais comuns. A farinha por ser a esmola mais recebida, os mendigos a colocava num saco menor para não misturá-la com os outros alimentos. Se passasse após o almoço, era comum se doar um prato de comida. Primeiro ouvia-se as palmas. . . e, em seguida, a chamada característica. . . “Ô de casa!” Depois com voz comovente disparava: “Dona, hoje tem uma sobrinha de comida?” Às vezes vinha lá de dentro o que mais temiam ouvir: “Perdoe por hoje, passe amanhã!” Lembro-me de uma vizinha de nacionalidade polonesa que sempre repetia essa mesma frase: “Perdoe por hoje, passe amanhã!” Vivi muitos anos como seu vizinho e nunca a vi dar uma esmola a um pedinte.

Outro mendigo da época era Tubiba. Por ser muito valente, só era seguro chamá-lo pelo apelido guardando certa distância. Apesar de idoso, já havia conseguido pegar alguns garotos mais lerdos e amedrontá-los. Muitos anos depois descobri a origem de seu apelido. Tubiba é um tipo de abelha sem ferrão (Melipona tubiba). Na década de 80quando trabalhava como fiscal de operações rurais do Banco do Brasil, visitei um pequeno e isolado povoado, no município de Touros-RN, com o nome de Tubibau. É bem possível que nosso personagem tenha tido sua origem nessa localidade.


Outro pedinte tinha o pitoresco apelido de Garapa. A meninada para aperreá-lo gritava: “Água!” Em seguida outro gritava: “Açúcar!” Ele fingia que não era com ele a provocação e prosseguia seu caminho. Lá na frente às mesmas palavras: “Água! Açúcar!” Quando ele não suportava mais o deboche dizia colérico: “Misture filho da p...!”

Assim eram nossos mendigos. Cada um com sua história de vida, seus infortúnios e suas lembranças. Viviam perambulando pelas ruas da cidade em sua constante mendicância. Os que não tinham para onde retornar dormiam onde melhor lhe abrigasse. Geralmente escolhiam as marquises das lojas do centro da cidade. Não temiam ser maltratados, espancados, queimados vivos ou simplesmente assassinados como atualmente acontece por esse Brasil a fora, e a freqüência desses atos bestiais tendem perigosamente a banalizar o sentimento de indignação.

Os vários governos civis que sucederam a ditadura militar, não dispensaram a devida atenção para as políticas publicas e como conseqüência, tivemos boa parte das classes menos favorecidas empurrada para a condição de pobreza extrema, resultando numa horda de miseráveis que invadem nossas ruas, sinais de trânsito, vãos de viadutos etc. À noite, em busca de repouso, esses homens, mulheres e até mesmo crianças, enchem as marquises das casas comerciais onde conseguem se abrigar do frio e da chuva ou buscam outros locais insalubres, onde se escondem de sua própria miséria. Mesmo assim, ainda são alvo dos que eles chamam de pleyboys.

Esses jovens, embora oriundos de “boas famílias” e de condição financeira privilegiada, são verdadeiros delinqüentes, pois durante a madrugada quando retornam das baladas em seus belos e confortáveis automóveis, adotam como diversão, atirar pedras e cometer outros tipos de agressão gratuita a esses pobres e infelizes desvalidos.